Constituição deve enfocar a defesa da vida
Texto de Frei Betto. Trata-se de uma carta encaminhada, em março de 1967 ao então deputado federal Luís Inácio Lula da Silva, presidente nacional do Partido dos Trabalhadores.
BETTO, Frei. Constituição deve enfocar a defesa da vida. Folha de S. Paulo. São Paulo, 26 abr. 1987. Sem paginação.
Companheiro,
Remeto-lhe essas reflexões atendendo a seu pedido de contribuição ao debate sobre um dos temas mais polêmicos da Constituinte: o aborto. Reconheço que não sou a pessoa mais autorizada a falar sobre este tema. Não sou mulher e o aborto é, em última instância, uma opção moral que ela tomará. Nesta sociedade machista, se os homens parissem o aborto seria considerado um sacramento. Não sou também especialista em Teologia Moral. Opino pelo dever político de o fazer. E o faço como cristão.
A posição da lei brasileira
Ninguém aborta peio prazer de fazê-lo. É sempre uma opção difícil, traumática, sob toda sorte de pressões e angustias. No Brasil, segundo dados oficiais, são cerca de quatro milhões de abortos por ano, resultando na morte imediata de cerca de quatrocentas mil mulheres. Fora as sequelas físicas, psíquicas e morais que acompanham muitas delas vida afora. Nem todas, certamente. Há mulheres que infelizmente comparam o aborto a uma extração de dente. O fato é que a atual legislação brasileira (art. 128 do Código Penal) considera crime o aborto —tanto da parte da gestante, quanto dos médicos, das enfermeiras e das curiosas que dele participam. Porém, a lei faz exceção aos casos de gravidez decorrente de estupro ou agressão sexual, bem como às razões terapêuticas, quando há risco de vida para a mãe (cardiopatias e tuberculose, por exemplo).
A posição da Igreja
No decorrer de sua história, a Igreja não tem uma posição unânime e definitiva. Ela oscilou entre condená-lo radicalmente ou admiti-lo em certas fases da gravidez. Atrás dessa diferença de opiniões residia a discussão sobre qual o momento em que o feto pode ser considerado um ser humano. Até boje nem a ciência, nem a teologia, tem uma resposta exata. Santo Agostinho (séc. 4) dizia que só a partir de quarenta dias após a fecundação, quando se pode falar em pessoa (unidade corpo-espírito). São Thomás de Aquino (séc. 13) concordou que não se pode considerar humano o embrião que ainda não completou quarenta dias, quando então lhe era infundida à "alma racional". Esta posição virou doutrina oficial da Igreja Católica a partir do Concílio de Trento (encerrado em 1563). Mesmo assim, sempre foi contestada por outros teólogos que se baseavam na autoridade de Tertuliano (séc. 3) e de Santo Alberto Magno (séc. 13), que defendiam a hominização imediata, isto é, desde a fecundação trata-se de um ser humano em processo. Santo Afonso de Ligório (1696-1787) admitia o aborto terapêutico caso a vida da mãe corresse risco imediato. Contudo, essa discussão sobre o feto "inanimado" (que ainda não teria alma) ou "animado" (já com alma), encerra-se oficialmente com a Apostólica Sedis, divulgada em 1869, onde o Papa Pio 9° condena toda e qualquer interrupção voluntária da gravidez.
Neste século, introduz-se a discussão entre aborto direto e indireto. Roma passa a admitir o aborto indireto, em caso de gravidez tubária ou de câncer no útero. Porém, não admite o aborto direto nem mesmo em caso de estupro. E não fez exceção quando um grupo de freiras foi violado no Congo. A posição atual dos teólogos mais qualificados não coincide com a de Roma. Bernhard Haering admite o aborto quando se trata de preservar o útero para futuras gerações ou quando o dano moral e psicológico causado pelo estupro impossibilita a mulher de aceitar a gravidez. E o que a Teologia Moral denomina "ignorância invencível". Nem a Igreja tem o direito moral de exigir sempre de seus fiéis atitudes heróicas. E o que a ética chama de conflito de valores e deveres. E o próprio Papa reconhece que, inclusive na questão do aborto, o grau de responsabilidade moral pertence, em última instância, ao inviolável reduto da consciência humana e só pode ser julgado por Deus.
Limites da posição da Igreja
Roma é contra a descriminalização do aborto baseada no principio de que não se pode legalizar algo que é ilegítimo e imoral: a supressão voluntária de uma vida humana. Mesmo defendendo tal princípio, a história mostra que nem sempre a Igreja o aplicou com igual rigor a outras esferas de conflitividade humana. Assim, ela defende a legitimidade da "guerra justa" e da revolução popular em caso de tirania prolongada e inamovível por outros meios. E o princípio do mal menor. Em muitos países a Igreja aceita também a pena de morte para criminosos comuns e políticos. E ela própria já patrocinou a eliminação física de pessoas consideradas hereges ou inimigas da fé católica.
Ainda que a Igreja defenda a sacralidade da vida do embrião, jamais comparou o aborto ao crime de infanticídio e nem prescreveu rituais fúnebres ou batismo para os fetos abortados.
O direito de uso do próprio corpo
Sob o ponto de vista político, neste tema, como em tantos outros, há muita mistificação por parte da esquerda e muita hipocrisia por parte da direita. Anda em moda a bandeira do "livre uso do próprio corpo". No que se refere a certas posições feministas frente ao aborto, o direito de "fazer o que quero do meu corpo, inclusive matar o germe de vida que nele habita", parece uma versão moderna e inversa da Lei do Ventre Livre.
É preciso encarar com muita seriedade as razoes que induzem uma gestante ao aborto. Nem todas são movidas por uma racionalização burguesa do uso do próprio corpo, semelhante à concepção do direito de propriedade, ius utendi et abutendi (direito de uso e abuso). Sabemos muito bem o resultado de tal concepção! Assim como o direito de propriedade tem intrinsecamente uma função social, o direito sobre o corpo não pode prescindir de sua natureza social. Este é um dos princípios que fundamenta o movimento ecológico. "Homem algum é uma ilha", dizia o título de um livro em moda na minha adolescência. Não há nada que uma pessoa faça com o seu próprio corpo que não tenha reflexos em seu relacionamento social. Do ponto de vista moral, não se pode aceitar como direito a autodestruição física, moral ou psicológica. Caso contrário, dever-se-ia respeitar o direito de o estuprador fazer uso de seu próprio corpo. Por que temer a lógica do estuprador? Por que ele, ao satisfazer suas taras, usa um corpo alheio? Não ocorreria o mesmo em casos de aborto? Extrai-se um corpo alheio, totalmente indefeso, para satisfazer interesses que não são os daquele ser embrionário.
A opção de abortar é moral e política. Pode ser encarada pelo ângulo do poder do mais forte sobre aquele que é inteiramente frágil. Tão frágil que se pode encontrar justificativas científicas para negar-lhe o título de humano. Para a genética, o feto é humano a partir da segmentação. Para a ginecologia-obstetrícia, desde a nidação, a implantação no útero. Para a neurofisiologia, só quando se forma o cérebro. E para a psicosociologia, quando há relacionamento personalizado. Sem trocadilho, o fato é que o feto é uma espécie de subproletariado biológico. Tão reduzido à sua impotência, que não tem como protestar ou rebelar-se. E simplesmente descartado por um poder incomparavelmente superior a ele. A Bíblia adverte que a grande tentação do homem ó querer "fazer de sua força a norma da justiça" (Sabedoria 2, 11). E, em muitos casos de aborto, o feto paga pela rejeição que a mulher tem ao homem que a fecundou ou pelos preconceitos que a atemorizam e a tornam tão escrava de conveniências sociais que, paradoxalmente, ela decide em nome de uma suposta liberdade. Liberdade que ela teme e da qual foge quando se trata de revelar uma relação adúltera, de assumir-se como mãe solteira ou de exigir de seu parceiro que seja companheiro e pai face à evidência de uma vida em processo.
Há casos em que o aborto é a culminância de um ciclo desprovido de coerência moral. Vive-se numa ambiguidade que nega o mínimo de respeito à dignidade alheia. A falsidade como cúmplice da conveniência. Engeles, em seu "A Origem da Família, do Estado e da Propriedade Privada", denuncia o mercantilismo que afeta as relações humanas nas classes dominantes, onde as pessoas valem pelo que têm e não pelo que são. Quem se empenha na transformação da sociedade capitalista não pode pensar do mesmo modo. O único capital que jamais pode perder é o moral. Pode até errar politicamente, mas a perda da moral acarreta a falta de credibilidade na causa que ele encarna. Em suma, faz o jogo do inimigo.
As situações-limites
A discussão sobre o momento em que o feto pode ser considerado humano permanece aberta. Partilho a opinião de que desde a fecundação já há vida com destino humano e, portanto, histórico. Sob as óticas cristã e marxista, a dignidade de um ser não deriva daquilo que ele é e sim do que pode vir a ser. Por isso, cristianismo e marxismo defendem os direitos inalienáveis dos que se situam no último degrau da escala humana e social.
É interessante observar que, na história da humanidade, sempre se pôs em xeque a plena dignidade de pessoas que eram mantidas na opressão: mulheres, índios, negros... Hoje, a discussão se o ser embrionário merece ou não o reconhecimento de tal dignidade, não deve induzir ao moralismo intolerante que ignora o drama de mulheres que optam pelo aborto por razões que não são de mero egoísmo ou conveniência social. Trata-se de mulheres muito pobres, como empregadas domésticas, que objetivamente não têm condições de assumir aquele filho, naquele momento; de prostitutas que dependem de seu corpo para sobreviver e dar de comer a seus dependentes; de casais que se deparam com uma gravidez imprevista que viria desestabilizar a vida conjugal' e familiar; de mulheres mentalmente enfermas, incapacitadas para cuidar de uma criança; ou de mulheres que engravidam involuntariamente aos 40 anos, quando a possibilidade de nascer um filho mongolóide se reduz de 1/2.500 para 1/100, sendo de 1/4S para mulheres que já atingiram os 45 anos. Enfim, há uma série de situações humanamente dramáticas, geradas pela pobreza, pela ignorância, pela opressão social, pela violência, que não pode ser encarada sob o olhar altivo do moralismo farisaico. Em principio, devemos lutar para que tais situações já não se apresentem, erradicando as causas inerentes à sociedade capitalista. Pouco adiantam os remendos legais que procuram encobrir suas contradições. Por esta via, em breve se discutirá o projeto de lei de eliminação dos mendigos ou de redução da maioridade para 5 anos, de modo a tornar penalizáveis os 36 milhões de menores abandonados nas ruas do Brasil.
Frente à profundidade de muitos dramas atuais, não basta aguardar o futuro em que as mulheres não temerão pelo nascimento de seus filhos e quando o aborto já não será necessário. Não se deve também ceder à hipocrisia da direita interessada em manter a criminalização do aborto para favorecer as "fábricas de anjinhos", as clínicas clandestinas que fazem a fortuna da máfia de branco, inclusive fornecendo fatos a indústrias de cosméticos, onde são aproveitados como matéria-prima de seus produtos.
A descriminalização do aborto Um dos principais especialistas em Teologia Moral e Ética Médica no Brasil, o padre Hubert Lepargneur admite que "devemos reconhecer, por desagradável que nos seja, a tendência dos países civilizados em considerar legal a operação, sob restrição de um mais ou menos rigoroso condicionamento, para que se controle um ato grave, individual e socialmente, uma operação que precisa de cuidados sanitários à altura das exigências modernas de saúde" (in "O Aborto Voluntário", Paulinas, São Paulo, 1983, pág. 47). E a defesa do sagrado dom da vida que levanta a pergunta se é lícito manter o aborto à margem da lei, pondo em risco também a vida de inúmeras mulheres pobres que tentam provocá-lo mediante chás, venenos, agulhas ou com a ajuda de curiosas, em precárias condições higiênicas e terapêuticas. Possivelmente uma legislação a favor da vida faça este drama humano emergir das sombras e ser adequadamente tratado à luz do Direito, da Moral e da responsabilidade social do poder público. O teólogo e jesuíta espanhol J. I. González Faus é de opinião que "mais do que o moralista, a existência de situações-limites deve ser contemplada pelo legislador civil, que não está obrigado a assegurar toda a moralidade e sim a convivência pacífica, nem está obrigado a prescrever a heroicidade ou a procurar um "melhor" inimigo do bem, senão que muitas vezes há de contentar-se em evitar o mal maior. E é possível que, nas atuais circunstâncias de nossa sociedade, a descriminalização legal do aborto seja um mal menor, enquanto todos nós não trabalharmos por uma sociedade em que o aborto já não seja necessário" (in "Este es el hombre", Ediciones Cristandad, Madri, 1986, pp. 277-285).
Por que setores da direita se opõem tão violentamente ao debate sobre a descriminalização do aborto? Não são os mesmos setores que proíbem a educação sexual nas escolas, defendem a pena de morte e aplaudem os Esquadrões da Morte? Ora, para tais setores a descriminalização do aborto poderia trazer à tona o que se passa entre executivos e secretárias; entre patrões e empregadas, além do risco de ter que dividir a herança com o filho bastardo. A morte clandestina no ventre elimina qualquer risco à propriedade e à imagem pública do proprietário. Para este, aliás, não há ilegalidade nesta matéria. Basta enviar a gestante de avião para um país da Europa e tudo estará resolvido de acordo com a lei. Porém, como ficam as mulheres pobres que não podem ter filho senão sob o risco de perderem o emprego e deixarem toda a família na miséria? São inúmeras as mulheres que, no Brasil, se vêem obrigadas a esconder que são casadas e a impedir a gravidez para obterem um emprego. Se esses setores da direita fossem sinceramente contra o aborto, eles lutariam para que ele não se tornasse necessário. Para que todos pudessem nascer em condições socialmente seguras. Como não estão dispostos a isso, o mais cômodo é exigir que se mantenha a penalização do aborto. E a penalização da espira! inflacionária ou das causas que levam à morte, por ano, 390 mil crianças brasileiras que ainda não completaram doze meses de vida?
Uma legislação a favor da vida
Já está comprovado que a descriminalização do aborto, em países capitalistas, não diminui o número de abortos clandestinos. Muitas mulheres continuam preferindo recorrer ao anonimato, para evitar danos à sua imagem social e/ou à do parceiro. O que se reduziu foi o número de óbitos de mulheres em consequência do aborto. E inúmeras gestantes que procuraram os serviços sociais de atendimento foram convencidas a ter o filho —o que não ocorreria sob a criminalização do aborto.
Hoje, muitas opiniões autorizadas na Igreja admitem que não se pode tratar a matéria com intolerância, supondo que, numa sociedade pluralista, pode haver valores morais universalmente aceitos. "No plano dos princípios —declarou Mons. Duchène, presidente da Comissão Episcopal Francesa para a Família— lembro que todo aborto é a supressão de um ser humano. Não podemos esquecê-lo. Não quero, porém, substituir-me aos médicos que refletiram demoradamente no assunto em sua alma e consciência e que, confrontados com uma desgraça aparentemente sem remédio, tentam aliviá-la da melhor maneira, com o risco de se enganar" (La Croix 31/3/79). E em abril do mesmo ano, o bispo francês manifestou que uma pessoa que aborta "não comete sempre uma culpa grave. Não levamos em conta aquilo que se passa nas consciências de certas pessoas envolvidas em situações aparentemente sem saída" (Le Monde 25/04/79)
Não se trata, pois, simplesmente de legalizar o aborto, como se fez com o divórcio. Antes, trata-se de impedi-lo e de defender os direitos da vida em embrião. Assim, uma legislação a favor da vida deve obrigar o poder público a promover amplas campanhas contra o aborto, esclarecendo suas implicações morais, físicas e psicológicas, como ocorre na China e na Iugoslávia; deve prever severas sanções às empresas e aos empregadores que recusam mulheres casadas ou não dão suficiente apoio às gestantes; deve criar postos de atendimento às gestantes - que pensam em abortar, onde médicos, psicólogos, assistentes sociais e, inclusive, ministros da confissão religiosa da interessada procuram convencê-la a assumir o filho, demovendo preconceitos e barreiras, como ocorre na França; deve ampliar a rede de Casas de Mãe Solteira (como já existe em S. Paulo, por iniciativa particular), de modo a evitar que as gestantes solteiras sejam induzidas ao aborto por desamparo afetivo, moral ou econômico; deve prever a objeção de consciência do pessoal terapêutico convocado a atuar nos casos de exceção previstos pela lei; deve estabelecer o salário materno e ampliar o número de creches; deve criar o sistema telefônico de atendimento às mulheres angustiadas por gravidez imprevista, como o SOS-Futuras Mães, da França, que dispõe de mais de noventa postos de recepção telefônicas; deve prever o amparo às famílias que adotam crianças rejeitadas por suas mães. Em resumo, deve assegurar o direito à vida do embrião, o direito ao amparo moral, psicológico e econômico à gestante e prescrever medidas concretas que socialmente venham a tornar o aborto desnecessário.
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